Monday, November 20, 2006

Reportagem: Salas de Ensaio (versão completa, revista e aumentada)

Quatro paredes e outros tantos acordes.

Viagem pelas mais recentes e carismáticas salas de ensaio e gravação da cidade do Porto. Oportunidade para conhecer por dentro os locais onde bandas consagradas e novos talentos partem cordas, esfolam dedos e colocam toda a sua arte e engenho ao serviço da música e ainda olhar os sonhos e pesadelos de quem vive para música. Os espaços esses são reservados, abertos até de madrugada, com histórias para contar, sons para descobrir e conselhos para guardar. Das lojas no centro da cidade até insuspeitos escritórios na periferia, passando naturalmente pela Ribeira de olhar voltado para o Douro, segue-se um acidental e nocturno percurso com banda sonora a cargo dos Repórter Estrábico, Checkpoint Charlie e StrangeVersion.

“Centros comerciais são centros culturais.”
Uma das mais recentes tendências das bandas em busca de uma sala de ensaio é a ocupação de centros comerciais. Neste admirável novo mundo, o espaço com maior número de bandas por metro quadrado na cidade do Porto é indubitavelmente o Stop. Mais de duas vintenas de projectos habitam a histórica catedral do consumo dos anos 80, actualmente transformada em metrópole do som. Longe da glória de outros tempos, vetada ao declínio pela ascensão dos shoppings de periferia, a antiga superficie comercial da Rua do Heroísmo alberga um número volátil mais crescente de bandas que alugam lojas entre o 2º e 3º piso. Na entrada, um placard antecipa o ambiente musical, anunciando: “Garagem das Guitarras/oficina no nº106”. Dois andares mais acima, pioneiros neste movimento de “ocupação”, encontramos os Repórter Estrábico, os primeiros a invadir o Stop, corria o ano de 1987, inaugurando um movimento migratório de colectivos dos quatro cantos da cidade para o carismático centro comercial.
No número 316, encostados à não menos conhecida danceteria “Porto à Noite” nasceram os temas do excelente “Eurovisão”. Inteligentes e atentos fenómenos transculturais, o colectivo sentencia, em discurso directo: “Se o Dallas tivesse aberto as lojas às bandas provavelmente ainda estaria aberto”, Luciano Barbosa assina o pensamento. Para o Líder, “existe aqui, no Stop, um certo retrato marginal do Porto que nos atrai”. Com vinte anos de actividade, mais de metade dos quais ensaiados entre estas quatro paredes, o projecto conhece como poucos as estórias de um espaço que tem acolhido ao longo da última década e meia personagens tão carismáticas como marginais da noite do Porto. De góticos a fadistas, de rastas a metaleiros, de prostitutas a senhoras de bem. No Stop ouve-se e vê-se um pouco de tudo, o lado mais cosmopolita e marginal da Invicta. “Já tivemos uma casa de fado mesmo aqui ao lado. Lembro-me da D. Rosa, boa voz, tinha o marido na prisão. Uma simpatia”, recorda Luciano. “Mais do que um centro comercial, o Stop é um centro cultural”, afirma o vocalista do RP.
Existem duas grandes vantagens no aluguer e transformação de uma loja num centro comercial em sala ensaio. A primeira é a segurança. Os músicos reforçam essa ideia adiantando que nunca foram assaltados e que até já deixaram as portas abertas e o material na meio do corredor. “É o privilegio de ter boa vizinhança”. Outra das grandes mais valias é a privacidade. Não têm de dividir o espaço com ninguém. Nota-se. As paredes da sala vestem-se de recordações de 20 anos de actividade dos Repórter Estrábico, uma espécie de segunda pele tatuada de “souvenires”. Do fio dental da capa de “Eurovisão”, ao charuto do vídeo “Biltre”, passando por “posters” e “creditações” de concertos. Entre ícones religiosos e pornográficos, o espaço reflete a dimensão pop-satírica do colectivo que vive bem com a memória. “Esta sala não tem nada a ver com os Galitos da Foz onde ensaiávamos. Aqui temos mais espaço, intimidade, um ambiente interessante, onde tudo pode acontecer”, afirma o Líder recordando ainda que quando ensaiaram o tema “Caracoroismo”, do mais recente “Eurovisão”, tiveram um senhor africano, cliente de um restaurante das vizinhanças, a dançar cuduro à porta da sala de ensaios. Cenas típicas de uma certa marginalidade urbana de um Porto fora de horas.
Adiante-se que para além do Stop, existem outros espaços comerciais de menor dimensão que também albergam projectos musicais na Invicta. Roteiro complementar inclui, entre outros, o Sírius por onde passam entre outras bandas X-Wife, Prostitutes e Holocausto Canibal.


“Este espaço é a nossa segunda casa”
Nesta nocturna viagem à descoberta de espaços alternativos de ensaio na Invicta, fugimos mais para norte da cidade, entrando na freguesia de Ramalde, encontramos o “edifício Chrysler”, na rua Delfim Ferreira. Construído nos anos 60 por um dos grandes nomes da arquitectura portuguesa, Artur Andrade, responsável, entre outros, por projectos tão emblemáticos na cidade do Porto como o cinema Batalha, o prédio de escritórios acolhe temporária e alternadamente perto de uma dezena de bandas.Os primeiros sons a ecoarem no edifício foram destilados pelas Amarginhas, com a voz da Fatuxa. O projecto entretanto extinto, cedeu lugar, na aurora do novo milénio, aos Checkpoint Charlie. João Pedro (a.k.a. Jp Sarembe) acompanhou ambas as bandas e conhece como poucos os cantos à casa.
Na entrada do piso 4, azulejos à antiga portuguesa avisam o visitante. “Nesta casa só têm lugar os que concorrem para o seu engrandecimento”. Aceitamos o desafio. Duas portas para lá do som dos Columbia, que salta das paredes para fora, frenético metal de surpreendente qualidade e arrojo, os Checkpoint Charlie apresentam a sua “segunda casa”. “É mesmo isso. Se calhar ainda passamos aqui mais tempo do que na nossa casa”, afirmam apesar de actualmente partilharem o espaço com os recém nascidos Mescal. Os Checkpoint afirmam-se como um dos segredos mais bem guardados do Porto. Concertos inesquecíveis no Hard Club e Vilar de Mouros valeram uma base inteligente de admiradores. “Para além dos ensaios, utilizamos este espaço para, juntamente com um grupo de amigos, cruzarmos artes, ideias e culturas – confessa João Pedro – já organizamos aqui, por exemplo, sessões de pintura”.
Mais amplos do que os espaços de centro comercial, os escritórios do “Chrylser” contêm um cheiro a modernidade pop que convidam a um intimismo “after-hours”. No entanto, quando mais de três bandas ensaiam no mesmo sector, os sons confundem-se e a acústica convida ao desafio do “ver quem toca mais alto”. Ao fundo, ainda se ouvem os acordes pesados dos Columbia que parecem invadir todo o corredor. “Bem, se fossem aqui os nossos vizinhos do lado era pior” afirma Fernandinho, o baterista. As paredes da sala seguram fotografias de concertos, artigos de jornal e creditações. “Já tocamos juntos há mais de 20 anos. Vimos para aqui todos os dias. Este espaço reflete essa vivência em comum. É de facto muito mais do que uma sala de ensaios, é uma segunda casa, tem um sentido de história e de pertença muito próprias”, afirma João Pedro.
Depois da gravação do EP e de um 2005 pleno de actividade, actualmente o projecto encontra-se numa espécie de descanso sabático para recuperar forças e ganhar balanço para um futuro certamente inovador. Mais elitista, o espaço afirma-se como uma república do som e das artes. Casa altamente recomendável que importa conhecer. Silky, Stowaways e Zen já passaram por aqui.

“Quem experimenta fica viciado”
Outra das novas tendências do mercado é o alugar de salas de ensaio à hora. Uma proposta atractiva para jovens bandas. O “low cost”, não pagar renda,e a qualidade das instalações são algumas das vantagens relativamente as propostas anteriores. Neste contexto, destaque para o novo espaço “Inside-Out, inaugurado em Junho do ano passado no Centro de Apoio à Criação de Empresas, CECA Cultural, do Porto. O Inside-Out oferece-se como uma ampla sala, com excelente acústica e equipamento musical à disposição das bandas para ensaios com os olhos voltados para o rio Douro. Os fundadores do espaço Cláudio Figueiredo e Sofia Valentim sentiram que na cidade do Porto existe um boom de bandas. A quantidade e a qualidade do grupos é um dos factor impulsionadores da ideia. “Este projecto nasceu de uma necessidade que também nós já sentimos na pele, de ter um espaço em condições para tocar”, confessa Cláudio. Dos DR Sax para um sem número de bandas paralelas da electrónica ao rock, o músico partiu da sua própria vivência para criar um espaço alternativo, capaz de satisfazer uma carência no mercado musical. “Já passei pelo Stop e sei da importância de se tocar numa sala em condições”, confessa. Para o mentor do Inside-Out, uma das grandes vantagens de se ensaiar num espaço como este é o factor rentabilidade, “as bandas estão mais concentradas e procuram aproveitar o tempo de forma criativa”, afirma, concluindo que “quem toca aqui uma vez fica logo viciado”. Foi o caso dos StrangeVersion. “Ensaiavamos na minha casa e era uma confusão. Mal começavamos a tocar, era ouvir os vizinhos a baixar os estores. Agora, desde que nos mudámos para aqui, não tem nada a ver”, afirma Hugo Mesquita, guitarrista da banda.
Para além da sala de ensaios, o Inside-Out oferece ainda aulas de músicas e gabinete de agenciamento. Outro dos objectivos do projecto passa por se afirmar como espaço de convívio entre músicos. “Estamos a organizar jam-sessions, a ideia é colocar os músicos a trocarem ideias a conviverem”, afirma Cláudio Figueiredo.
No contexto das salas de ensaio à hora, outro espaço possível passa inevitavelmente pelo Baixa a Tola, em Matosinhos. O proprietário, J. Martins pede descrição. Aluguer informal num local oculto do comum dos mortais mas bem conhecido da comunicade musical do Porto. Para aceder a um dos dois espaços disponíveis tem, naturalmente, de se baixar a cabeça. Fã dos New Model Army recorda com alguma saudade a década de 90, como “os anos mais concorridos no Baixa a Tola. Agora a malta está desempregada e sem dinheiro. A música para muita gente é mesmo um luxo”.

“A falta de dinheiro aniquila muitos talentos”
Das salas de ensaios directamente para o estúdio. Outra das grandes novidade no mercado da musical do Porto é o Estúdio da Ribeira. De portas abertas desde Agosto do ano passado no belo Largo de S. Domingo, o espaço transpira a granito e afirma-se como um “must” na área da gravação. Com o fascínio pela música e o prazer pela tecnologia a andarem de mãos dadas e com olhos voltados para o Douro, o Estúdio da Ribeira acolhe produção de maquetes, álbuns e “jingles” publicitários. Carismático e experiente, com trabalhos produzidos ao lado de Mário Barreiros, José Fontefria, mentor do projecto, revela a filosofia e identidade do espaço. “Decidi abrir um estúdio por que senti que se perde muito talento por falta de dinheiro. Existem músicos com material excelente não chegam a gravar porque os estúdios pedem fortunas. Quando ouço maquetes de bandas jovens e me dizem que gastaram 700 contos, digo-lhes que foram roubados”. Segundo o produtor a ideia base do projecto é promover “aquilo que melhor se faz por cá”. Não se trata do sindroma Robin Wood, mas de uma vontade genuína de ajudar quem tem poucos recursos financeiros e muita exigênca em termos de qualidade. “Sinto que o Porto tem realmente muita gente nova com talento. Apesar de isto ser um negócio, faço o possível e às vezes o impossível para ajudar quem precisa. Não gosto de ver talentos desperdiçados”, afirma.
Assumindo a papel do produtor como “alguém que peneira o som, tentando separar o ouro da areia e realçar o melhor que há em cada músico”, o José Fuentefria aconselha bandas que estão pensar em ir para estúdio. “Fundamental é terem a lição preparada, saberem gerir o tempo e programarem bem o que vão tocar.” Num estúdio tempo é dinheiro.
No entender do responsável pelo espaço, actualmente as bandas estão cada vez mais preparadas para gravar e “talentos não faltam, é necessário é dar espaço, atenção e liberdade criativa aos músicos com gosto e vontade de trabalhar.” Estúdio da Ribeira um espaço interessantíssimo para descobrir no circuito musical do Porto.


Antes de sairem da garagem…
Conselhos e cuidados a ter antes de se alugar uma sala de ensaios. Tempo, espaço e, naturalmente, dinheiro são três factores base. O espaço deve ser pensado em função do tempo disponível da banda para ensaiar. Se a febre da música for unicamente de sábado à noite o melhor será alugar um espaço à hora. Ganha-se em rentabilidade e poupa-se dinheiro. Se, pelo contrário, os ensaios forem intensivos, aconselha-se uma visita aos centros comerciais, onde se podem encontrar espaços interessantes a partir de 100 euros por mês. Na altura da escolha, cuidado com os vizinhos, estes podem ser uma banda de metal mais do que pesado e ganharem na batalha dos decibéis, e cuidado com a acústica própria do espaço, provavelmente requer adaptações. Se o dinheiro não chegar, o ideal é convidar uma banda amiga para dividir as despesas, perde-se intimidade, mas reduz-se para metade o orçamento. Outro dos factores essenciais é a segurança. Convém encontrar uma espaço que tenha segurança, não vá o diabo tecê-las e perderem numa noite um investimento de anos.

1 comment:

Michael said...

Grande guia, obrigado :)