Thursday, September 28, 2006

Reportagem: Salas de ensaio - parte I

1. Quatro paredes e outros tantos acordes.

Viagem pelas mais recentes e carismáticas salas de ensaio e gravação da cidade do Porto. Oportunidade para conhecer por dentro os locais onde bandas consagradas e novos talentos partem cordas, esfolam dedos e colocam toda a sua arte e engenho ao serviço da música. São espaços reservados, abertos até de madrugada, com histórias para contar, sons para descobrir e conselhos para guardar. Das lojas no centro da cidade até insuspeitos escritórios na periferia, passando naturalmente pela Ribeira de olhar voltado para o Douro, segue-se um acidental e nocturno percurso com banda sonora a cargo dos Repórter Estrábico, Checkpoint Charlie e StrangeVersion.

“Centros comerciais são centros culturais.”
Uma das grandes tendências das bandas em busca de uma sala de ensaio é a ocupação de centros comerciais. Neste admirável novo mundo, o espaço com maior número de bandas por metro quadrado na cidade do Porto é indubitavelmente o Stop. Mais de duas vintenas de projectos habitam a histórica catedral do consumo dos anos 80, actualmente transformada em metrópole do som. Longe da glória de outros tempos, vetada ao declínio pela ascensão dos shoppings de periferia, a antiga superficie comercial da Rua do Heroísmo alberga um número volátil mais crescente de bandas que alugam lojas entre o 2º e 3º piso. Na entrada, um placard antecipa o ambiente musical, anunciando: “Garagem das Guitarras/oficina no nº106”. Dois andares mais acima, pioneiros neste movimento de “ocupação”, encontramos os Repórter Estrábico, os primeiros a invadir o Stop, corria o ano de 1987, inaugurando uma migração de colectivos dos quatro cantos da cidade para o carismático centro comercial.
No número 316, encostados à não menos conhecida danceteria “Porto à Noite” nasceram os temas do excelente “Eurovisão”. Inteligentes e atentos ao fenómeno, o colectivo sentencia: “Se o Dallas tivesse aberto as lojas às bandas provavelmente ainda estaria aberto”, afirma Luciano Barbosa. Para o Líder, “existe aqui um certo retrato marginal do Porto que nos atrai”. Com vinte anos de actividade, mais de metade dos quais ensaiados entre estas quatro paredes, o projecto conhece como poucos as estórias de um espaço que tem acolhido ao longo da última década e meia personagens tão carismáticas como marginais da noite do Porto. De góticos a fadistas, de ritmos africanos ao metal, de prostitutas a senhoras de bem. No Stop ouve-se e vê-se um pouco de tudo, o lado mais cosmopolita e marginal da Invicta. “Já tivemos uma casa de fado mesmo aqui ao lado. Lembro-me da D. Rosa, boa voz, tinha o marido na prisão. Uma simpatia”, recorda o Líder. “Mais do que um centro comercial, o Stop é um centro cultural”, afirma o vocalista do RP.
Existem duas grandes vantagens no aluguer de uma loja num centro comercial para ensaio. A primeira é a segurança. O colectivo reforça essa ideia adiantando que nunca foram assaltados e “até já deixámos as portas abertas e o material na meio do corredor. É o privilegio de ter boa vizinhança”, afirmam. Outra das grandes mais valias é a privacidade. Não têm de dividir o espaço com ninguém. As paredes da sala vestem-se de recordações de 20 anos de actividade, uma espécie de segunda pele tatuada de “souvenires”. Do fio dental da capa de “Eurovisão”, ao charuto do vídeo “Biltre”, passando por “posters” e “creditações” de concertos. Entre ícones religiosos e pornográficos, o espaço reflete a dimensão pop-satírica, inteligente e criativa de um dos colectivos mais carismáticos e cativantes da cidade. “Esta sala não tem nada a ver com os Galitos da Foz onde ensaiávamos. Aqui temos mais espaço, intimidade, um ambiente interessante, onde tudo pode acontecer”, afirma o Líder recordando ainda que quando ensaiaram o tema “Caracoroismo”, do mais recente “Eurovisão”, tiveram um senhor africano, cliente de um restaurante das vizinhanças, a dançar cuduro à porta da sala de ensaios.
Para além do Stop, existem outros espaços comerciais de menor dimensão que também albergam projectos musicais. Roteiro complementar inclui, entre outros, o Sírius por onde passam entre outras bandas X-Wife, Prostitutes e Holocausto Canibal.




(continua)

Sunday, September 17, 2006

"Waiting for the Sun"

Esperei toda a semana pelo nascimento do novo Sol. Sinceramente, não me arrependi. Gostei do que li. Inteligente como projecto jornalístico, o novo semanário para além de ocupar um importante espaço na imprensa escrita, vem, desde logo, animar um mercado que, há quase meia década, necessitava de um abanão para sacudir o excesso de conservadorismo e absorver alguma, da tão necessitada, inovação. Com as falências d´"O Comércio o Porto" e d´"O Independente", a mudança de sexo do "Blitz" e o declínio do "Expresso", o "Sol" vem, de facto, brilhar e mostrar que a vida é possível em cenários de crise, trazendo novos públicos para a leitura dos jornais e roubando alguns, não muitos, ao "Expresso".
No corpo do semánário surpreendeu-me, logo a abrir, a "Entrevista Imprevista", de José Fialho Gouveia à socióloga Maria Filomena Mónica; o editorial de JAS sobre o encerramento das maternidades, assunto importante não só pela natureza política "contranatura" de um governo dito socialista, mas também pelas gravíssimas consequências sociais. Com a secção-mãe "Política&Sociedade" a mandar no jornal, seguem-se temáticas mais populares de crimes, alguns com outros sem castigo, em "Conversas na Prisão" e "Asfalto", entrecurtadas com reportagens de descompressão como "Jornalista aos 13 anos" ou "Mais fácil ser mãe", num regresso à terra dos zés e das marias, do Portugal profundo afastado os corredores de S. Bento.
Com tema de capa "Bebés Trocados", uma novela da vida da real, uma clara piscadela de olho ao público feminino, na "Tabus" surpreendeu-me sobretudo a veia de crítico cinematográfico de Paulo Portas. Uma delícia.
Em termos gerais gostei do projecto, espero e desejo um futuro radioso para o "Sol". Não é todos os dias que nasce um jornal num país onde ler é quase um acto de resistência cultural.

Friday, September 15, 2006

Crítica: Experimentar um "Dia Maior"


Condenado a sobreviver aos constrangimentos da ordenação do real, a dualidade do corpo produtor/descodificador de signos adquirire o seu significado mais puro no confronto com o Outro. Partindo de um contexto de trabalho experimental, a coreógrafa Né Barros percorre o território das tensões da comunicação e dos sentimentos rumo ao transcendente. Em “Dia Maior”, o tempo reclama a dimensão fragmentada das emoções físicas. Existirá um sentido supremo que encontre no corpo em movimento, veículo do pensamento simbólico, o seu sustentáculo primordial?

Depois do sucesso da proposta “Vaga” (2003), na qual Né Barros explorou inteligentemente ambientes densos e formalizantes, ampliados via “hi-tech” pelo uso expressivo e desconcertante das “malas-monitor”, construindo uma gramática relacional exploratória dos constrangimentos ambivalentes do “corpo-máquina” e das rotas de aproximação e afastamento emocional e identitário com o Outro, a expectativa em torno do mais recente projecto da co-fundadora do Balleteatro atingiu um ponto superlativo no interior da comunidade da dança contemporânea.
Quem alimentou desejos de assistir a um “remake” técnico ou um “upgrade” estético do trabalho anterior ficará certamente desiludido. Co-produzida pelo Teatro Nacional de S. João (TNSJ) e Balleteatro, a nova proposta, assinada pela coreógrafa portuense, não repete fórmulas de sucesso, evita o lugar seguro e confortável do êxito, avançando com ousadia e criatividade para a exploração de novos territórios de pesquisa do movimento, forjados no experimentalismo matricial, no antidesejo da permanência, na mutabilidade dos corpos e na partilha contagiada e contagiante dos significantes.
Despido de tecnologia ambulatória, isento de objectos apêndices em movimento e da rigidez formal e racionalizante do seu trabalho anterior “Vaga”, “Dia Maior”, em estreia absoluta no TeCA, gerado do ventre de um contexto de trabalho manifestamente ensaísta, revela uma sobriedade interpelativa, nua de preconceitos e inspiradora de movimentos, abrindo novos espaços, tão criativos quanto generosos, de acolhimento e procura, de análise e interrogação, prontos a serem ocupados pela epifania do Outro, no confronto das múltiplas relações e sentimentos, na proximidade primária intrinsecamente violenta da paixão e no isolamento social das multidões que anulam o indivíduo face ao seu desejo frustrado, consequentemente, auto-antropofágico e alucinatório.

A contaminação do Outro no acto criativo
Uma das características mais relevantes da coreografia “Dia Maior” pertence ao âmbito da esfera metodológica, contagiada, desde a sua concepção, pelo paradoxo do abandono vigiado, a criatividade num contexto analítico. Pela primeira vez, o compositor Alexandre Soares, colaborador habitual de Né Barros, em trabalhos como “Voom” (1999), “No Fly Zone” (2000), “Exo” (2001) e “Vaga” (2003), sobe ao palco num contexto de um espectáculo de dança contemporânea, assumindo uma (ex)posição e um diálogo constante e permanente com os movimentos de construção corporal dirigidos por esta coreógrada sobre o elenco constituído por sete intérpretes. Ao contrário de “Vaga”, em “Dia Maior” hay banda. Evita-se a gravação, partilham-se, em formato live, signos dentro de uma base narrativa comum em constante reformulação. “Dia Maior” traduz a rendição consciente em direcção a um dinamismo experimental ousado, sustentado por uma rede estrutural genealógica próxima do invisível e inaudível.
Grande parte da composição de Alexandre Soares nasce em palco, resultando de (re)encontros, (re)interpretações e confrontos com a coreografia visceral de Né Barros, que, passível de escrita e fixação, tal como os signos musicais de Alexandre Soares, abre lugar à polissemia, à imagem e à metáfora, gerando infinitos espaços de interpretação, campos aráveis, ávidos de exploração de sensações relacionais de impacto e divergência, numa sintonia relacional com a acção despossuída da coreógrafa como a sua criação, com a sua coisa amada, com o objecto do seu desejo artístico. É neste território aberto que o Dia é, de facto, Maior. A comunicação no e com o outro transforma-se em epifania, em Outro, em revelação na diferença e na complementaridade, perfusão e confronto, muitas vezes violentos, sobretudo urgentes na descoberta de sentimentos e identidades.

A austeridade metafísica do espaço experimental
Apesar de nem sempre explícito ou conscientemente expressado, existe em Né Barros um desejo de encontro com o transcendente, calcorreando o caminho do desconhecido rumo a uma certeza inalcançável. É num espaço nu e austero, desprovido de acessórios e desmembrado de próteses tecnológicas; território utópico destituído de simulações, vazio de convenções arbitrárias, onde se procura o movimento e o som primordiais, representativos de toda uma exploração de relações de proximidade e afastamento. A busca de uma terra, simultaneamente, de ninguém e de todos.
O cenário de “Dia Maior” reflecte essa austeridade fértil, colocando o corpo solitário ou em multidão no centro de todas as atenções como emissor preferencial de signos, como veículo de comunicação com o infinito. É pela carência de significantes, que a comunicação do corpo se torna mais esclarecida e menos ambígua. A atmosfera cénica, plástica, assim como todo o ambiente estético do espectáculo insinua o princípio do despojamento como via para o encontro mais autêntico com o absolutamente Outro. Para tal, urge evitar o excesso de significação e a superfluidade de convenções arbitrárias. É indispensável aniquilar as tentativas de apreensão e ordenamento da realidade, a categorização que suspira pela construção de um universo artíficial, de uma compreensão e comunicabilidade racional alienante e alheia à ontologia humana, abstração que, através de um exercício formalizante, gera na alma um ruído tão agónico quanto alucinador. As consequentes (dis)funções e fugas, os constrangimentos nas relações e identidades pessoais são, desde logo, reveladas nos movimentos construídos e dirigidos por Né Barros em micronarrativas, onde os corpos alternadamente se oferecem e se submetem numa relação de poder, que tem como leit motif o contraste: a luz e as trevas, o interior e o exterior, a felicidade e o descontentamento. O acordar em branco no princípio de um dia qualquer, o movimento que avança por tensões sexuais irresolúveis, a queda abrupta dos corpos na impossibilidade de se cumprirem em si mesmos, a repulsa do encontro com o outro, a disfuncionalidade do físico que se revela incapaz de satifazer o desejo em toda a sua extensão e profundidade, o cansaço da morte como esperança última de um infinito invisível são alguns dos quadros em movimento num “Dia Maior” que nos habita a todos.

Os movimentos curvos do tempo relacional
O tempo é o espaço de encontro entre o corpo e o som.
O tempo, numa complementaridade de contágio com as sonoridades de Alexandre Soares, surge como um espaço coreografável de ligações, emissões e construções simbólicas. O corpo, por influência do tempo, sofre mutações constantes e não lineares, criadoras de transformações na identidade e na comunicabilidade.
Dos círculos formados pelos bailarinos à volta de um outro isolado até à frase: “tive uma sensação estranha durante cinco segundos”, Né Barros vai percorrendo diversas problemáticas contemporâneas relacionadas com a realidade e o tempo: da Relatividade de Einstein à Quântica de Bohr.
O movimento de formalização colectiva de ordenação convencional do tempo entra em rota de colisão com a realidade científica do fenómeno “per si”; o tempo é uma função de vários factores. Abrindo a paleta de constrangimentos interpessoais ao tempo, os desejos predefinidos parecem morrer ao adquirirem a consciência da impossibilidade do real, deambulando sobre situações extremas e agónicas de isolamento, rumo a um cenário próximo da esquizofrenia.
No confronto com o Outro, a construção da teia de relações, em cenas dramáticas, do indivíduo em queda e em reclusão, do eu deprimido e oscilante como o tempo, fisicamente curvo, encontra na estranheza, na disfunção, na ambiguidade, um tempo interior substancialmente diferente do outro exterior.
O carácter simbólico do título “Dia Maior” atribui uma adjectivação de superioridade a um período convencionado de 24 horas, realçando a evidência física do próprio movimento. Existem dias maiores no interior das 24 horas. Algo semelhante concretiza a tosca expressão do vulgo perder tempo, criando uma relação simbólica de poder com o tempo, atribuindo-lhe uma presença preensível, sensitiva e táctil, como imagem de um qualquer outro objecto do quotidiano, passível de desaparecer por entre os dedos de uma mão ou cair inadvertidamente pelo bolso roto de um casaco.
Em “Dia Maior”, o tempo pertence à esfera do abstrato-individual. Né Barros constroi simbolicamente movimentos temporais diferentes que se cruzam, anulam e complementam. Do acordar solitário à interpelação falhada do “tu?”, que ignora a identidade e a presença do outro, existe um espaço de memória que se confunde com a realidade concreta reformulando-a em dimensões temporais diversas.
Sublinhe-se, finalmente, a perfusão do tempo real-imaginado que encontra na memória um operador de metamorfoses. A realidade temporal do corpo imóvel do intérprete que clama por atenção, exigindo um confronto que não se concretiza, é substancialmente diferente do “objecto” desejado em movimento. Num beijo, cada lábio deixa a sua impressão digital na memória.
Neste trabalho de Né Barros, a problemática da memória no e do corpo reaparece em palco de forma ainda mais intensa. Se em “Vaga”, a utilização de tecnologia como extensão sugeria uma memória virtual como simulacro comunicacional estático, rígido, preensível em ruídos fixos, a tendência experimental da metodologia representativa de “Dia Maior” sugere uma reflexão da memória como um movimento dinâmico, flexível, inapreensível e sujeito a acidentes infinitos, como a própria vida.

Sunday, September 10, 2006

Entrevista a Mário Cláudio:Parte II


- Existe um sentido profundamente humanista na sua triologia. A alma humana é a matéria-prima sobre a qual, como um artesão, gosta de rendilhar, trabalhar, escrever…

Realmente, como disse, a matéria-prima do ficcionista é a alma e o comportamento humano. Tenho dificuldade em conceber universos literários que não tenham a ver com isso.

- Nesta triologia aborda o exílio relacionando-o com a problemática das minorias e do poder sobre elas exercido. Convoca personagens tão diferentes em idade, raça e mesmo época. Porquê?

É interessante a palavra que utiliza, pois caracteriza absolutamente aquiolo qe pretendo: exílio. O que quis foi precisamente fazer o retrato de pesssoas que estão à margem, que estão exiliadas em relação ao veio comum da existência.
No primeiro caso eram pessoas tão marginalizadas que estavam dentro de uma cadeia; no segundo, crianças marginalizadas do ponto de vista rácico e etário, neste caso são as pessoas que estão marginalizadas por atingirem uma certa idade. Algo que assistimos cada vez mais na nossa sociedade.
Tudo isto me leva a que se possa pensar nas relações de uma forma diferente. Essa marginalização resulta sempre de uma determinada concepção de poder. Que é o poder da maioria representada pelas pessoas adultas de uma raça que é a dominante. Em todo este processo há um potencial enorme de humanidade que é desperdiçado. Se pensarmos, por exemplo, no velho desta história, o melhor da sua obra foi produzido nos últimos anos da sua vida.

-Acredita que essa frase também se pode aplicar a si?

Gostaria que aquilo que produzo fosse sempre cada vez melhor. Mas, acredito que, de uma maneira geral, há uma tendência no mundo de hoje para uma hipervalorização do adolescente, sobretudo jovem adulto em desprimor de outras idades. Na sociedade em que vivemos, a partir dos 35 anos, as pessoas começam a ficar fora da vida. Desde logo, começam por ter grandes dificuldades em arranjar emprego. Depois assistimos a fenómenos de metamorfoses terríveis e em nada dignificantes de jovens que querem ser mais velhos e velhos que querem ser mais jovens. Assistimos a isso diariamente, desde operações plásticas, até ao culto da energia física que roça por vezes o caricato e que depois tem outras formas de exteriorização, como o vestuário, por exemplo.

- Não poderá existir um factor de medo, que, de certa forma, impede um encontro autêntico com o outr, provocando situações de exclusão e exílio?

Claro. A raíz dessse fenómeno é precisamente o medo. É o medo de ser destruído pelo outro que leva a meter as pessoas nas cadeiras. É o medo de ser submergido por uma cultura diferente, no caso do racismo, que conduz ao exílio. É o medo do que está para além da vida que aflige muito os jovens. A tendência é para se esconder tudo o que é motivado pelo medo. Esconde-se na cadeia, numa ilha num lar da terceira idade.

Friday, September 08, 2006

Entrevista a Mário Cláudio: Parte I

Com o romance “Gémeos”, editado pela D. Quixote”, Mário Cláudio encerra a triologia iniciada com “Ursamaior” sobre a problemática do exílio e a forma como as minorias são afastadas do teatro social, castrando a própria humanidade da sua essência plural e consequentemente criativa. Partindo do geral para o particular, uma entrevista sobre a forma, o pensamento e o conteúdo da escrita de um dos mais importantes romancistas da língua portuguesa.

- Os seus romances são reconhecidamente exigentes para com o leitor. Tendo um conhecimento tão profundo e amplo de múltiplos registos linguísticos, porque é que opta por uma escrita tendenciamente barroca.

O estilo de um autor não é uma questão de opção, mas sim de natureza. Escrevemos aquilo que somos e não como gostariamos de ser. Tendo-se uma estrutura de carácter excessiva, barroca, não se pode escrever de forma neo-clássica, por exemplo. A maneira como se escreve, o estilo que se adopta, é reflexo da maneira com somos construídos por dentro, isso não se pode alterar com facilidade.

- Suponho que possui uma certa pulsão para o perfeccionismo.

Sem dúvida. Não sou capaz de escrever seja o que for senão em termos de uma grande exigência comigo próprio. Quero assumir a responsabilidade por tudo o que escrevo. Gosto de responder por aquilo que faço de uma forma absoluta e isso leva-me a não poupar esforços para que aquilo que escrevo corresponda o mais exactamente possível àquilo que quero.

- A ignorância não serve de desculpa para o erro…

Acho que assim como se diz que a ignorância da lei não aproveita a ninguém, não entendo que um autor se possa acobertar de qualquer desculpa baseada na ignorância. O leitor tem o direito de exigir o máximo do autor e o autor tem o direito de produzir esse máximo sem se preocupar excessivamente com a opinião do leitor.

- É precisamente o seu caso, é, indubitavelmente, um dos romancistas portugueses mais exigentes para com os seus leitores…

…mas essa exigência começa por mim. Sou exigente comigo e depois, evidentemente, as pessoas que me lerem são livres de aceitar, não aceitar, de entender, de não entender. A função de escritor não é tornar-se legível. A função do escritor é tornar-se autêntico.

(continua)

Sunday, September 03, 2006

O Alquimista da Aldeia


António Fontes caminha devagar. Gosta de sentir a calma das árvores e o cheiro da terra. É um ser telúrico. um homem da aldeia, um guardador de rebalhos. A sua aldeia é o mundo, as suas ovelhas são as tradições e a identidade popular de Montalegre. Ficou conhecido por organizar o Congresso de Medicina Popular em Vilar de Perdizes, mas por detrás dessa "imagem de marca" existe um ser detentor da sabedoria profunda do tempo e da magia serena e simples unicamente acessível a quem consegue ver Deus nas pequenas coisas.
"Vejo-me como um homem da aldeia". Uma aldeia onde rituais, preces e festas se misturam com o árduo trabalho do campo e com a aspereza rude do clima transmontano. António Fontes nasceu numa aldeia, Candezes do Rio, vive em Vilar de Perdizes e não troca a sua aldeia por nenhum palácio dourado. Recebe os amigo com presunto no verão e castanhas no inverno. É genuíno, sereno e gosta de pequenos rituais como a "queimada". Coloca o açucar no fundo do pote, rega-o com bagaço e incendeia-o. Depois verte lentamente um fio de vinho tinto, espreme umas gotas de limão e introduz, com uma atenção e cuidado cirúrgicos, pedaços de maçã e um ponhado de grãos de café. As chamas purificadoras elevam-se no ar e transformadas numa cascada de fogo subtraem ao espírito a malignidades indesejada, adicionando ao corpo a vitalidade necessária para enfrentar a dureza de mais uma jornada.
O padre Fontes gosta de servi e de ser para os outros uma extensão, uma elo e um sinal de Deus. Gosta de gerar comunhão numa utilidade ritualizada em cada gesto em cada palavra. Ao realizar "a queimada" esbatem-se as ténues fronteiras entre sagrado e profano. "O que é tido como sagrado é muitas vezes metido entre paredes e lugares sagrados, como é o caso de igrejas, capelas ou santuários, mas o sagrado passa para fora desses espaços. Existe sagrado misturado com o profano, que é o sagrado da rua, dos cafés do trabalho, e que vai com o homem e a onde está o homem está Deus", afirma.
A sua paixão pelos rituais presentes na sabedoria do quotidiano da gente simples acompanhou de mão dado o seu desejo de ser sacerdote, desde tenra idade. Aos 19 anos, ainda no seminário de Vila Real, dinamizava, paralelamente aos ritos comuns, actividades semi-ocultas, semi-públicas, semi-privadas, semi-legais que lhe custaram a expulsão. "Uma festa sagrada - explica - é composta por partes profanas e a fasta profana é composta pelo seu inverso. Acharam que eu fui a parte profana e não a parte sagrada". Convidado a reentrar, sentiu um novo alento e uma nova confiança . Prosseguiu os seus estudos de teologia e abraçou o sacerdócio em 1961. "Optei por continuar no seminário com esta olusão de fazer da Igreja uma Igreja mais viva."
Actualmente dedica-se a promover, divulgar e interpretar a cultura popular da região de Montalegre, que permanecia esquecida no anonimato. Na realidade, ninguém tinha falar de Vilar de Perdizes até o padre Fontes organizar os polémicos e mediáticos congressos de medicina popular que lhe valeram algumas repreensões por parte do episcopado, nada a que desde jovens já não tivesse habituado. "Aproveitei os congressos - diz - como um trampolim para revitalizar a aldeia e para chamar a atenção da opinião pública para uma zona carenciada e abrir as portas ao mundo para aquela zona através da cultura popular."
Uma cultura presente nas gentes que pisam o chão da sua aldeia. O padre Fontes é um homem que olha para o mundo como "o espaço onde Deus habita e o homem coabita" e vê em Deus uma paragem obrigatória ruma à felicidade. "Se o homem descobre que o mundo está habitado por Deus pode fazer o paraíso na Terra, se não descobre Deus faz o inferno para ele e para os outros", afirma. Mas descobrir Deus num mundo cada vez mais complexo não é tarefa fácil. A nossa aldeia global tem múltiplas cidades e guetos, tem labirintos de alienação, egos do tamanho de catedrais e mensagens trocadas, obstáculos que ocultam o divino, escravizando o humano. "Há mais tentativas para ocultar o divino do que para o mostrar. É necessário parar um pouco, olhar para o caminho e ver se vale a pena ir."
Gosta de ler e de sentir. Gosta de aprender. Actualmente tem entre mãos uma tese de mestrado em comunicação social para avaliar. Foi convidado como júri pela Escola Superior de Jornalismo do Porto. Livros de cabeceira não tem. Não gosto de ler na cama, mas de vez em quando pega, pega em três livros italianos sobre a etnografia dos Alpes e lê excertos até que o sonho vença e acabe por adormecer. Os seus temas preferidos giram em torno da etnografia, antropologia, sociologia e religião popular.
O padre António Fontes tem 61 anos e é um homem da aldeia, um guardador de rebalhos. A sua aldeia é cada vez mais o mundo, e as suas ovelhas as tradições. Retira da Terra e do Céu a essência das coisas simples em rituais feitos de alteridade, alquimia e muita fé.