A subsídio(in)dependência
Nada do que se está a passar entre a câmara do Porto e os agentes culturais da cidade me surpreende. Já muito escrevi, desde 2001, sobre o pensamento e comportamento de ambos. Desde cedo, senti que o choque era inevitável. Trata-se de uma novela dramática em estilo, pobre em conteúdos e previsível nas formas. Sinal dessa pobreza ideológica, é o mais recente debate sobre a retirada dos subsídios a fundo perdido que traduz uma série de equívocos gerados por ambas as partes. O artigo "O Outro lado do Rio", de António Pedro Vasconcelos, publicado este sábado no "Sol" é mais um sinal desses equívocos.
Se por um lado, o discurso dos agentes culturais baseia-se erroneamente no axioma de que Rui Rio não tem uma política cultural para a cidade e de que onde lhe falta sensibilidade artística sobeja dureza e rigor ecomómico, por outro o autarca perde coerência política ao vender austeriadade e rigor orçamental e, em nome do populismo e das sondagens, perder a oportunidade histórica de rentabilizar um dos grandes trunfos turísticos e económicos do Porto, a sua capitalidade e potencial cultural. Rio não tem coragem de remar contra a pobreza cultural do eleitorado que o colocou à frente da câmara, é neste sentido que merece o epíteto de populista.
Em termos meramente políticos, ainda de recordo de uma interessante conversa que tive com Rio, em plena ressaca da Capital da Cultura. Na altura, trabalhava para "O Comércio do Porto". Estávamos nos corredores da cooperativa Árvore. Num diálogo pleno de sinceridade, em off, Rio confessou que a sua preocupação eram os bairros sociais e a segurança, não a cultura por esse ser o desejo da maioria dos portuenses que o elegeu. Nada podia estar mais perto da verdade. Rio disse-me ainda que segundo estudos de opinião que tinham chegado ao seu gabinete, quando perguntados sobre quais os aspectos mais preocupantes da cidade, áreas de actuação, os portuenses colocavam os bairros sociais e a segurança no topo da lista. Temas como a cultura e o lazer não tiravam o sono a ninguém. Como político, Rio pensa e move-se pelo eleitorado que o legitima nas urnas. A esquerda intelectual e elitista da cultura portuense por mais razão que possa ter, não coloca Rio no poder, a sua expressão eleitoral é desprezível. É neste sentido, Rui Rio é um político populista. Responde aos gostos do seu eleitorado. A partir de agora em vez de acolher um texto de Harold Pinter às moscas, o Rivoli vai encher para receber encenações do La Féria. Recorde-se que no Teatro Sá da Bandeira, Rio chegou a comprar centenas de bilhetes da "Rainha do Ferro Velho" para oferecer aos seus inquilinos dos bairros sociais.
Agora em termos culturais importa uma nova série de reflexões. Os produtos artísticos, apesar de tendencialmente comerciais, nem sempre são imediatamente rentáveis (uns por falta de talento comercial outros por excesso elitismo artístico). A qualidade do "produto" não sempre anda de mãos dadas com a sua rentabilidade a curto, médio ou longo prazo. Se um "filme da treta" conquista as bilheteiras nacionais, seduzindo mais público português e ganhando mais dinheiro em dois meses do que Manoel de Oliveira em toda a sua carreira, isto não significa que, enquanto proposta artística, a dita comédia seja superior ao qualquer uma das das propostas de Oliveira. O Ministério da Cultura, através do ICAM, continua a financiar Oliveira com um ou dois milhares de contos por filme não por esperar um grande êxito de bilheteira, mas por saber que os seus títulos são uma bandeira de Portugal no mundo da "sétima arte". Apesar dos portugueses não se identificarem com as cores da "bandeira" de Oliveira e ser falsa a ideia vendida em Cannes ou Veneza, o Portugal cinematográfico cresce autónomo do público, e o autor d´"O Convento" tem já escritas várias páginas de ouro na história do cinema mundial.
Política e cultura chocam desde logo por serem de natureza distinta. A primeira é uma ciência tendencialmente conservadoram enquanto a segunda alimenta-se da ruptura. Na primeira, uma vez eleitos, os representantes do povo rapidamente se esquecem de quem os elegeu. O povo só merece atenção na medida em que contribuir para a sua manutenção do poder. Na segunda, a cultura, essa existe no movimento, na ruptura, na criatividade. Numa sociedade de raíz judaíco-cristã a ligação destes dois universos numa era pós-moderna cria inevitavelmente fracturas. Lamentavelmente, sem Renascença ou Iluminismo, Portugal continua afastado na Europa em aspectos bem mais importantes do que os económicos PIB ou dívida externa. Infelizmente, a cultura e a arte continuam ausentes do discurso político e este traduz, inevitavelmente, uma pobreza intelectual e estética cada vez mais lancinante. Quanto mais desisteressado o povo estiver da política, melhor para os políticos. A ausência de cultura é uma das ferramentas mais antigos na perpetuação do poder político.
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