Monday, July 04, 2005

"Live 8": Heróis ou hipócritas?

Não me chocou ver a área VIP em Hyde Park comprada por "colarinhos brancos", que, de costas para o palco e para o espectáculo, bebiam garrafas de D. Perignon vendidas no local a 99 libras, nem que Sir Elton John tivesse ido à festa no seu helicóptero particular. O cinismo de alguma imprensa britânica, com Independent em inevitável destaque, sobre o "Live 8" limita-se a explorar o óbvio, o previsível. Espantado ficaria, se a invejada aristocracia rock britânica deixasse os aviões em casa e fosse a pé para o concerto, num gesto de ascese medieval tipo Fátima, tão absurdo e inconsequente, ou que quem ajudou a pagar a conta no final da festa não tivesse direito a um lugar na primeira fila, com ou sem champagne.
Mesmo que tudo o resto falhe, G8 incluído, fica a certeza que, depois de arrumadas as guitarras, a aldeia global e a geração internet conheceram um evento que trouxe, mesmo que temporariamente, a questão africana para a agenda internacional e para o pensamento colectivo. Naturalmente, a pergunta que se impõe é se o G8 ouviu os acordes nostálgicos do "grand finale" com "Hey Jude"? (tema escrito por Sir Paul McCartney ao filho de John Lennon, Julian, após o assassínio do Beatle em Nova Iorque). Não será o G8 a causa do problema africano, mais do que a sua improvável solução? Certamente, ao ouvir McCartney poucos se teram lembrado (e isso sim seria bem mais interessante do que escrever sobre o preço das garrafas D. Perignon), de que foi o Beatle que organizou o pró-patriótico concerto pós-9/11 em Nova Iorque, com a melodia de encerramento a ser usada como slogan "fight for freedom", pela administração Bush na batalha GWOT (Global War on Terror).
Naturalmente a imprensa britânica não acertou nas críticas ao "Live 8", atirando-as deliberamente para o lado mais populista. Blair já tinha ganho nos ecrãs da MTV. Enquanto, a BBC optava por interromper a emissão "live" no momento em que os ecrãs de Hyde Park transmitiam vídeo-choque da fome em África, evocando as técnicas do "Aid" de 1985. Depois de ler alguma impresa internacional, com várias análises ao fenómeno e posições como disse por vezes cínicas e demagógicas sobre um problema dramático, é quase patético, olhar para a ressaca na imprensa nacional. A título de exemplo deixo apenas o mais do que infeliz título do JN de hoje: Reunião dos Pink Floyd acabou por ser a cereja no topo do bolo. A notícia, naturalmente um copy/paste da LUSA, traduz a inércia cada vez maior da imprensa nacional e o desconhecimento do contexto envolvente ao projecto que pouco ou nada tem a ver com o reencontro circunstancial embora simbólico dos cabelos grisalhos de David Gilmour e Roger Waters. Em contraste, a RTP optou pela agressividade do desespero. Faltou profundidade, sobrou emoção. Lamentavelmente, pelo caminho ficou novamente uma oportunidade de debater um assunto tão importante quanto dramático. Entretanto todas as atenções se voltam para a Escócia. Provavelmente, se tudo o resto falhar, a "big thing" será creditada sem sombra de dúvidas a saint Geldof.

2 comments:

Filipa Paramés said...

olá anastácio :)

nem a propósito essa dos pink floyd. acabei de escrever sobre isso no blog.
cambada de inergumes, um espectáculo com fins humanitários e estas bestas preocupadas com a união dos pink floyd...

enfim, estas atitudes deitam muito abaixo, ou então são a prova de que as coisas não andam para a frente com estas mentalidades.
beijinhos*
f.

Anastácio Neto said...

É a lei da inércia que domina o jornalismo "mainstream" português. Quando os directores comerciais deixam um canto de página para os editores preencherem, estes descarregam sobre os estagiários um copy/paste da LUSA e está resolvido o embaraço. O caso Pink Floyd é disso um exemplo escandaloso...
Gostei do que li nas pautas, mysti.