Evento/reflexão: Cinema na cidade do Porto
As quatro salas de cinema do Cidade do Porto celebram hoje dez anos de existência, aproveito a oportunidade para uma breve reflexão e algumas memórias sobre a sétima arte no Porto, mas primeiro fica o convite para logo à noite, a partir das 21h30, assistir a uma das quatro estreias em simultâneo que ocupam a quatro salas do Multiplex, numa amostra do que segue já para os ecrãs em Janeiro 05. Confirmadas estão também as presenças especiais do realizador Manoel de Oliveira e do actor Ricardo Trêpa, ambos tomam sobre si a responsabilidade de apresentar, em antestreia nacional o mais recente projecto de Oliveira: “O Quinto Império - Ontem como Hoje”, com estreia oficial marcada para o próximo dia 27 de Janeiro.
Volvida uma década sobre o pioneirismo tecnológico e dos sustos gerados pelos então inovadores sistemas de som Dolby Digital, com espectadores a saltarem das cadeiras e a reclamarem na bilheteira do Cidade do Porto pelos sustos acústicos, concretizando assim experiências cinematográficas feitas de emoções fortes, o espaço desenhado no atelier de Manuel Graça Dias e Egas José Vieira apresenta-se hoje como uma ilha de resistência cultural, revelando uma programação sustentável entre propostas "mainstream", como "Alexandre, o Grande", e produções de autor europeias, como "Olhem para Mim" de Agnès Jaoui, acolhendo ainda a Festa do Cinema Francês e os alguns dos mais significativos títulos do cinema português, a estreia de logo à noite, do "Quinto Império" é um exemplo mais do que superlativo.
No actual contexto comercial, o cinema encontra-se dominado, sobretudo a partir de segunda metade da década de 90, pelas grandes superfícies que debitam semanalmente um volume de estreias absolutamente incomportável e cada vez mais viradas para a teoria do mastiga e deita fora, impossibilitando assim a entrada no circuito de obras menos convencionais. O que triunfa é, sobretudo, o cinema industrial norte-americano que, especialmente, na última década, tem refinado até aos limites do absurdo, com o profissionalismo de marketing desconcertante, produtos especificamente desenhados para conquistar público à escala mundial, simplificando argumentos, linguagem, personagens, apostando em temáticas "worldwide", adaptações de vídeo-jogos, heróis da BD, qualquer símbolo que já tenha penetrado entre culturas e seja facilmente reconhecível e consumível nos quatro cantos do mundo. São cada vez mais raras as surpresas nos filmes de Multiplex. O mais dramático é que o público já nem exige uma novidade, em espanto, contentando-se simplesmente com uma boa dose de sustos no ouvido, três toneladas de efeitos especiais e uma dupla de caras conhecida.
Neste contexto, duas das quatro salas do Cidade do Porto, bem como o Nun´Alvares afirmam-se, desde logo, como locais de culto para um público cinéfilo que procura, sobretudo, assistir aos títulos premiados nos festivais de Cannes, Veneza ou Berlim, em detrimento do ir ao cinema para ver qualquer coisa que acompanhe a digestão de um saco de pipocas. No Nun´Alvares vivi experiências cinematográficas tão marcantes como a exibição d´ “A Festa”, de Thomas Vinterberg, com o público a ficar agarrado à cadeira uns bons cinco minutos após o final do filme, ou já no Cidade do Porto, uma extraordinária e cativante conversa com João Botelho a propósito da comédia "A Mulher que Acreditava Ser Presidente dos EUA" ou ainda ao entrar em contacto com um dos melhores filmes que vi este ano: “O Regresso” do russo Abdrey Zvyagintsev.
Actualmente, e depois do dramático, para não dizer ridículo e autoritário, encerramento do Terço, mesmo aqui à beira de minha casa (lembro-me perfeitamente da última sessão, com interessantíssimo “As Horas”, de Stephen Daldry), o Porto sobrevive com apenas dez salas de cinema, enquanto só o Arrábida, em Gaia, propõe 20 cinemas. É triste, no mínimo, assistir ao abandono, à morte por indefinição, do Batalha e da sua sala Bébé, na qual o cineclube do Porto tantas obras referenciais da sétima arte exibiu, criando uma geração de cinéfilos actualmente em vias de extinção. É doloroso ver o Teatro Sá da Bandeira a cair aos bocados e a passar filmes porno, onde, no início do século XX, Aurélio Paz dos Reis apresentava ao país a mágia do cinema no intervalo de sessões de teatro popular. A média de 100 mil espectadores/ano das salas do Cidade do Porto e a ressurreição do Passos Manuel (sobre o qual sempre coloquei algumas reservas quanto ao formato e à intencionalidade), ambas significam uma pequena amostra de resistência cultural numa cidade pioneira e fundamental na história do cinema português, mas que,infelizmente, caminha a passos bem largos para um deserto de alternativas de qualidade. Ao Porto, sobram pipocas e coca-cola e faltam espaços dedicados ao cinema enquanto arte.
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