Entrevista: João Canijo
Sendo "Noite Escura" um dos mais relevantes filmes portugueses de 2004 e uma das propostas cinematográficas mais arrojadas dos últimos anos, tomo a liberdade de partilhar parte de uma entrevista que tive a oportunidade de realizar com João Canijo, nas vésperas da estreia, na cidade de Porto. Depois do intenso "Ganhar a Vida", que confirmou Rita Blanco como uma das mais empenhadas e viscerais actrizes portuguesas, "Noite Escura" abre a porta para uma triologia dedicada ao Portugal profundo e sustentada, desde logo, com um elenco de luxo, com Beatriz Batarda, naturalmente, em grande plano.
Da conversa que tive com Canijo fica a ideia de uma realizador apostado em usar a sétima arte como observatório psicossociolígico de estado da nação e como arma arremesso contra o cinzentismo muitas vezes pseudo-intelectual e uma cultura das massas que, alimentada pelos média, transforma a informação em entretenimento, afogando o pensamento e a reflexão num primitivismo emocional e a roçar o populismo político. Não é de todo acidental que na exaustiva preparação para Noite Escura, Canijo tenha constatado que Portugal é o país europeu com maior densidade de casas de alterne. Ficam algunas das ideias centrais do filme vistas por um dos mais cativantes, talentosos e atentos cineastas portugueses.
-Como é que nasceu a ideia para este filme centrado nas atmosferas das casas de alterme?
-A ideia não começou pelo alterne. Começou pela Rita, Beatriz e pelos personagens gregos da peça que serve de base ao argumento, "Ifigénia em Aulis", de Eurípedes. Só depois é que andei à procura de um sítio no qual pudesse encaixar essa história. A ideia central foi mergulhar a tragédia na indiferença ou como diz Philip Roth, o triunfo da banalização sobre a tragédia.
-Mas essa vitória da banalização não acaba inevitavelmente por se converter numa tragédia?
-Sim, mas a tragédia é indiferente ao mundo que a rodeia, ninguém dá por ela. É como se não tivesse ocorrido. Essa era a ideia fundamental, afogar a tragédia na rotina de uma casa de alterne.
-Para conhecer essa rotina encetou um périplo por várias casas de alterne. Que aspectos o surpreenderam nessa experiência?
Foi um trabalho de preparação feito por mim e que demorou quase dois anos. Quando os actores entraram no projecto, eu já saiba os sítios que eles deveriam visitar.
-Fez uma espécie de roteiro...
-Exactamente. Esse roteiro foi feito a partir de visitar que fiz a casas de alterne do Minho ao Algarve.
- Ao todo quantas casas visitou?
Tenho uma ideia muito precisa. Foram no total: 85.
-Impressionou-o a dimensão do fenómeno?
-Já sabia que o Minho, em geral, e Braga, em particular tinham uma grande concentração. O que verifiquei foi que isso já não é bem verdade, pois com a aberura da A3, toda essa concentração transitou para a Galiza e Guimarães. Mas o que mais me impressionou foi saber que, não é só no Minho que existem muitas casas de alterne, mas por todo o país, acompanhando a densidade populacional de cada região. Verifiquei ainda outra coisa espantosa: Portugal é o país da Europa com maior densidade de casas de alterne por quilómetro quadrado.
-Como que é que reflete sobre esse surpresa?
-É uma reflexão interessante, pois dos países que conheço Portugal é concerteza onde se fala mais de sexo e que tem, simultaneamente, mais dificuldades de relacionamento com o sexo. Essas dificuldades relacionais têm muito a ver com a noção de pecado. Basta ver que Portugal é um dos dois países europeus onde o aborto ainda continua a ser a ser proibido.
-Temos uma raíz cultural muito católica...
-E isso faz com que o sexo, em vez de ser encarado de forma natural, seja escondido e clandestino. Isso está, também, directamente ligado ao referendo sobre o aborto, no qual o "Não" venceu. De facto, quem venceu foi a abstenção, o que não deixa de ser significativo.
-Pode significar, entre outras coisas, que o "Sim" optou por ir à praia e não às urnas.
-Que não se assumiram. O que revela uma certa hipocrisia, muito típica aliás, não só das casas de alterne, como também dos próprios países católicos.
-Em "Noite Escura" existe uma hipocrisia, um jogo de fingimentos entre as profissionais da noite e os clientes que é transposto para a vida familar dos proprietários da casa de alterne. A fronteira entre a realidade e a ficção acaba por se diluir. As pessoas transformam-se nas personagens numa interpretação perpétua...
-Completamente. No filme, Celeste, que foi uma alternadeira de prestígio, já não consegue diferenciar a vida profissional da familiar. Beatriz Batarda disse a certa altura: "o mundo da noite é viciante". É-o precisamente no sentido em que as pessoas perdem a noção daquilo que são, da sua própria identidade.
-O filme começa em continuidade, apresentando uma cena, desde logo, dramática: a Beatriz Batarda, ao lavar o chão, encontra, com uma naturalidade desconcertante, uma prostituta degolada na casa de banho. O espectador fica com a sensação de ter chegado a meio do filme, que este já comecou e houve algo que ele perdeu, alguma coisa de importância capital...
-Essa é a ideia. Quando vê um quadro, a história já começou. Não me interessava explicar como é que as coisas começaram. Pretendia apanhá-las a meio. A ideia era partir do irremediável.
-Apesar de não ser um documentário, o filme acaba por ser um retato muito realista do Portugal profundo...
-Sim sem dúvida. É realista. O filme é tão realista que teve dois argumentos paralelos: a história da familia e as conversas das meninas da casa.
-Que surgem em "voz off".
-Em "off" por contingências de montagem. Todos os diálogos estavam em "in". O argumento final tinha duas colunas paralelas com diálogos da família e das meninas. A ideia era afogar a tragédia na rotina de uma casa de alterne. Todos os diálogos das meninas são reais, foram retirados do trabalho de preparação nas casas de alterne.
-Que noites tem projectadas para o futuro?
-Este filme é o primeiro de uma triologia baseada em peças gregas. O próximo será sobre o crime organizado. O terceiro sobre o Portugal profundo, tendo em conta o crime da Figueira, em Portimão e a família da Joana.
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