Tuesday, November 09, 2004

Mário Cláudio: "A função do escritor não é ser legível, mas autêntico"

Pouca gente lê os romances de Mário Cláudio. Apesar de se afirmar como um dos maiores escritores contemporâneos da língua portuguesa, ao lado de nomes António Lobo Antunes ou José Saramago, o autor de "A Cidade no Bolso" não cativa o grande público, os "compradores de livros", nem o espaço mediático pertencente aos dois autores supracitados. A sua escrita não raras vezes é acusada de ser demasiado rebuscada, barroca, excessiva, dando pouco espaço ao leitor para respirar e encontrar uma terceira via imagética que lhe possibilite despertar os sentidos em detrimento do uso constante da razão e da memória histórica.
Tendo como pano de fundo o lançamento pela D. Quixote do seu mais recente trabalho, "Gémeos", com o qual encerra a triologia das constelações de setes estrelas, iniciada com "Ursamaior", tive a oportunidade de conversar com Mário Cláudio na sua casa aqui no Porto. Numa extensa entrevista editada parcial e posteriormente num diário e que não me cabe aqui reproduzir, o autor de "Amadeo" confessou a razão pela qual não cede uma vírgula a um estilo literário que certamente lhe poderia valer mais cópias vendidas e um maior exposição livreira e mediática.
"O estilo de um autor - diz Mário Cláudio - não é uma questão de opção, mas sim de natureza. Escrevemos o que somos". Umas das características mais marcantes da personalidade de Mário Cláudio é precisamente o elevado grau de exigência da pesquisa e elaboração que coloca em cada obra. Uma exigência que é partilhada com o leitor. Para apreciar, por exemplo, "Oríon" mais do que este último romance "Gémeos", é desde logo necessária uma atenção particularmente singular aos detalhes da história e à estrutura narrativa da obra. Complexa, certamente, mas autêntica no sentido mais humanista do termo. Como me confessou o autor "a função do escritor não é ser legível, mas sim ser autêntico".
Não é por acaso que a mais recente triologia encerra uma poderosa e singular reflexão sobre o estado de exílio. Se em "Ursamaior" temos a problemática das prisões no Portugal contemporâneo, como forma de controlar os perigosos, colocando-os à margem da teatro social, e em "Ursamaior" o degredo de crianças judias durante o reinado de D. João II, sublinhando uma dupla forma de marginalização rácica e etária, nesta última obra, "Gémeos", a velhice de um pintor e a sua degradação física são olhados pelo próprio artista à luz de uma relação de amor-ódio com uma adolescente. Apesar de se desenrolar séc. XIX, a obra remete-nos para a outra reflexão urgente sobre a forma como a nossa sociedade idolatriza a juventude, beleza e a boa forma física, o exterior, a superfície, encerrando, por oposição, a velhice a sete chaves em lares da terceira idade ou oculta-a com cosméticos, operações plásticas e outros exercícios que, por vezes, atingem o ridículo. Em última análise, a superfície e a estética do aparente é sobrevalorizada em detrimento do conhecimento experiencial e da profundidade histórica. Não raras vezes assistímos a situações a roçar o cómico de mulheres a querem passar por adolescentes e adolescentes a desejarem ser adultos, num culto do corpo e da beleza que por vezes roça o caricato. Não há nada mais dramático do que ver na rua uma sexagenária vestida de "teenager" com um comportamento infantil.
Não sendo necessário nem obrigatório ler as duas obras anteriores, "Gémeos" apesar de ser uma das obras mais "acessíveis", certamente não irá parar aos tops das livrarias, nem dos shoppings, no entanto, no universo literário português afirma-se como um dos livros a ter em atenção e uma boa porta de abertura para uma literatura que não sendo de aeroporto, praia ou viagem, oferece pistas e reflexões urgentes e confirma a excelência da escrita de uma das mais brilhantes mentes da cultura portuguesa.

1 comment:

Anonymous said...

Que bom poder ler um texto tão bem escrito, que denoa cuidado, reflexão e sentido crítico. Que prazer ler o teu texto...
Continua!...Isabel